TEXTOS CRÍTICOS
las trampas de la fe
Texto catálogo | Galeria Quarta Parede
André Fernandes | 2022 (em português)
Entretelas, entremundos: condição humana da insularidade cuja síntese é a vida como processo artístico
Na exposição Las trampas de fe (2022), na Galeria Quarta Parede, em São Paulo, o cubano Alexis Iglesias evidencia o que está na base da construção artística: percepção e crença – percepção do mundo pelos sentidos e crença de que existe um desejo permanente de transformá-los em linguagem. As armadilhas apresentam-se ao fazer coincidir experiência e mundo. Desse modo, a pintura é para o artista uma possibilidade de produzir outras realidades, utilizando o que aprendeu na Academia de Belas-Artes San Alejandro, a fim de dialogar com a história da pintura sem se descolar completamente da vida.
Assim, desde que chegou ao Brasil vindo de Cuba em 1993, Alexis Iglesias dedicou-se principalmente à pintura, dando a ela o mesmo estatuto de respirar, caminhar, comer, dormir, transar, porque entende que razão, imaginação e entendimento não devem ser separados, tampouco hierarquizados quanto ao privilégio de um ou de outro, cujo risco é incorrer em abstrações vazias ou numa experiência caótica. Por isso, o título da exposição destaca aquilo que está na base da construção da realidade.
O debate a que Alexis Iglesias se propõe a desenvolver brinca no jardim das pinturas. Brinca em pelo menos dois sentidos, jogando com a técnica e com as relações entre as imagens, sem necessariamente se deixar deter pelas categorias: academicismo e modernismo, figurativo e abstrato, história e subjetividade, e tensionando as relações do que chama de “sua cozinha”, isto é, do interior da pintura, o que pode conduzir à pergunta em que medida a imagem não é ação e produtora de consequências na realidade e a realidade na imagem, essa imagem que faz da alegoria seu veículo?
Alegoria compreende então um modo; não algo abstrato, mas carne da experiência que cria mundos. Emprestando seu olhar e fornecendo indícios de intuição, experiência, princípios e distâncias, o artista concede particular atenção à dignidade do processo criativo, ao mostrar como compreende o próprio processo, que coincide com seu estar no mundo. Pois é daí que se precipitam perguntas sobre superfícies luminosas e opacas que refletem imagens e sombras, resultados das escolhas artísticas.
Em Mal-estar do desejo (2021-2022), por exemplo, Alexis apresenta uma elaboração da conhecida tela As meninas (1656), de Velázquez, onde a infanta Margarida e entourage são surpreendidas pela presença do rei Felipe IV de Espanha, enquanto o artista trabalha. Chama atenção que no século XVII o pintor apareça quase ao centro da tela e olhe para fora dela. Alexis se apropria dessa imagem para chamar atenção para o processo criativo. A apropriação é indicada pelo aspecto inacabado da pintura em aguadas e pelo apagamento de detalhes para dizer expressamente que em nenhum momento pretende imitá-la. Nesse sentido, a escolha da técnica situa a pintura distante da cópia e mais próxima do esboço. A apropriação é antes um gesto para lembrar que o ofício do pintor conserva certa dignidade no espaço íntimo da criação.
E, ao fazer isso, Alexis diferencia etapas e processos artísticos, a saber, quando o que há é apenas uma cogitação no artista, quando cogitação se materializa no seu fazer com tintas, pincéis e tela e, por fim, ao tornar-se produto simbólico capaz de mediar relações. A diferença nos detalhes, como dispor apenas a silhueta do pintor, designa alguma percepção crítica de si mesmo, mostrando que não necessita sequer que os olhos permaneçam. Essa alusão ao olhar e ver uma realidade é uma alusão negativa, tanto para o olhar quanto para a realidade, pois supõe que jamais uma realidade é dada, mas construída. É desse modo que os olhares do fundo do espelho mais ao centro da tela parecem fornecer a evidência da dúvida ao revelar a cara do espectador. Aí está a ironia, supor que o artista revela algo; de fato, mostra a dúvida em relação ao que vê e ao que crê, como que dizendo: “crer… creia quem vê”.
Na construção desse jogo de relações, projeções e reflexos difusos, há ainda outros elementos.
Uma mancha dourada desce verticalmente como resultado do gesto que é olhar, e olhar de novo e, talvez, vislumbrar outras possibilidade, pois como já se disse: um clássico é aquilo que começa e nunca termina de dizer. O gesto é a tentativa encontrar na imagem algo que a atualiza sob uma outra aparência. No caso, perguntando: como cada um e todos estão presentes no mundo, para comutar figura e realidades por meio de ação pictórica. Ou, ainda, de modo mais próximo: onde está atenção enquanto o artista realiza seu trabalho? Provavelmente, a atenção está capturada por telas luminosas, corpos deslizam sobre elas sem se fixarem em nada, de onde os reflexos os miram fixamente, revelando suas caras, sem que se apercebam. Hoje, tudo passa rápido demais. E qual será o mal-estar do desejo? O artista mostra por meio de um aparelho estranho, em planos variados, que é a impossibilidade se demorar, sem poder olhar e olhar novo as coisas do mundo pelos meios da pintura e articular as partes pela linguagem que fazem mundos muito mais lentamente.
Em outro dos trabalhos, Experiência do vazio (2021-2022), o mesmo aparelho investiga a paisagem de outro plano, como se a pintura de gênero estivesse num outro tempo, como uma realidade virtual inalcançável, de onde se descola um rumor de mar, quase silêncio, sugerindo o absurdo, apesar do gesto, apesar do movimento, apesar da linguagem da qual escorre algo que insinua a impossibilidade de captar tudo, como se tudo estivesse posto e não houvesse causa, apenas tudo existisse, como em Acidente da matéria (2021-2022). O ser humano como um grão de areia então pode ser acidente da matéria, mas todos estão vivos ou, diria Duchamp, “quem morre são os outros”, e vivos produzem linguagem insuficiente como condição humana. Em Fonte tudo se reduz… a mesa vazia onde todos estiveram presentes e já não estão, memento mori, mais uma vez um silêncio entre os homens e o ruído explode nas coisas.
Outro elemento, um aparelho delgado, personagem da alegoria da ação sem causa, expõe as dúvidas quanto às possibilidades das linguagem humanas, a necessidade de falar e retomar a fala até que se dê alguma aproximação com o outro, apesar de toda dessemelhança. A produção de uma linguagem é uma busca sem descanso. Assim, Alexis Iglesias parece dispor-se num espaço entre, numa antessala, apostando na construção de valores íntimos, nas relações comunitárias ausentes no dia a dia, tais são os personagens da ceia. De onde surge a pergunta: de que modo a imagem não constrói uma realidade as demais realidades? De que modo se diferenciam? Representação, imitação, alegoria, coisas do mundo, princípios, crença, todas supõem uma linguagem e um território. Para Alexis, trata-se de ver pela pintura como podem se ampliar os horizontes dessa exploração.
É necessário dizer então que em seu desejo de fundar um território na vida que o artista se inscreve em pinturas cujos planos parecem divergir que reivindica a possibilidade de transitar da mesma maneira entre elas, lançando mão de sua liberdade, seu território e sua imaginação, sem ingenuidade. Não à toa, o último trabalho feito para a exposição é a instalação Ironias do desejo (2002), na qual fios e cerâmicas tomam o espaço em formas que remetem às telas como num retorno cíclico de seu esforço.
Desse modo, essas pinturas podem ser tomadas numa espécie de dimensão meditativa e metafísica, que do espírito saem e a ele retornam, não apenas como uma imagem a ser vista, mas como uma realidade a ser dividida. O testemunho de uma experiência plástica. Mais do que uma recordação, uma atmosfera do que se perde na linguagem. Pois, se o que está em jogo numa batalha concreta, é um território, que ao fim da batalha é muita vez esquecido, deixado de lado, o que há de mais importante num enfrentamento entre campos de forças são as narrativas que constituem a alegoria: um lugar do qual não se pode ser desterrado –, para o artista, o próprio entendimento da arte. Aquele que rege as relações dessa batalha imaginária, que ao recuperar em telas conhecidas intervém com a própria história, com narrativas que lhe foram contadas, onde descansa num lugar digno o que aprendeu na Academia de Belas Artes San Alejandro.
Finalmente, resta situar Alexis Iglesias na vida. Em 1993, imigrou de Havana a São Paulo, onde permanece estrangeiro. Estrangeiro é condição que nunca se dissipa totalmente, língua, silêncios e documentos oficiais. Apesar dos diálogos a que se lança, da aproximação com a cultura alheia, essa condição errante é parte do que se mostra entre uma história totalizante e uma plausibilidade simbólica particular. Dessa mediação entre signos perdidos aparece algo que se perdeu na tradução. E é esse algo que deve ser procurado aqui, pois o artista reivindica sua liberdade criativa e seu fazer nesse espaço que supõe um observador maduro e autônomo, capaz de enxergar o que deixou cujo valor para ele é inestimável.
[1] “A alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse pensamento.” LAUSBERG, H. Manual de retórica literaria, Madrid, Gredo, 1976, t. II, 283 e ss. apud HANSEN, Alegoria, São Paulo, Hedra, 2006. p. 7.
Salto - Alexis Iglesias
Texto Revista Artnexus Nº88 volumen 12
Carmen Lorenzetti | 2013 (em espanhol)
Salto – Alexis Iglesias
Texto Revista Artnexus Nº88 volumen 12
Carmen Lorenzetti 2013 (em espanhol)
Exposición del cubano Alexis Iglesias (1968), que tiene la curaduría de Andrés I. M. Hernandez, compuesta de cuadro de grande formato, nos ponen frente a la cuestión de la actualidad de la pintura en el mundo de hoy o todavía mejor sobre la problemática de la figuración en la pintura. Si hacemos la lectura de las obras desde el punto de vista de la representación ya perderíamos, ya que desde hace más de un siglo y mucho más en la actualidad, tenemos todas estas cantidades de imágenes que en arte representan el mundo sobretodo con la fotografía, el vídeo y también con la computadora. La pintura tendría entonces que ponerse en una posición de descarte en relacion a los nuevos medios tecnológicos para poder afirmar algo nuevo, que tenga todavía y siempre un sentido.
En primer lugar la pintura se propone como técnica, hoy más que nunca, como algo diferente a respecto de la costumbre dominante del muerde y huye, de la rápidez y de la improvisación con que se crea la copia de la realidad, fuera del arte, en la vida cotidiana. Y en efecto necesita de más tiempos, de pausas, de reflexiones, y vive en la separación del mundo, ya que se realiza en un taller y fuera de la mímesis de la realidad y de su inmediato imaginario publicitario y comunicativo.
Retoma una manualidad y una adhesión a las cosas que, en el arte desde siempre resistiendo, busca la manera de utilizar, recomponiendo con un gesto antiguo la voluntad de no desatar el vínculo entre cuerpo y objeto. Se propone entonces una recomposición de la relación con el mundo sin mediaciones, que los nuevos medios rompen, poniéndose como mediadores mecánicos del hacer del hombre. Sin embargo la nuevas tecnologías, junto a las instalaciones nos hablan de la realidad en que vivimos con considerable inmediatez. ¿Cual es entonces el lugar de la pintura? Puede que, como parece aparentar Iglesias, sea también lo de regresar a la tradición, a pesar de todo, para encontrar una manera de transformar nuestra visión de las cosas y decirnos algo nuevo.
Los oníricos objetos de sus cuadros (barcos, coronas, piramides), son puestos en una evidente perspectiva, que nos permiten crear una analogia con los experimentos de un maestro italiano cuatrocentista de la perspectiva como Paolo Uccello, es fácil que Iglesias se haya recordado del famoso ¨Mazzochio¨ puesto en hilarante perspectiva que tiene que ver con su cuadro La Edad del Oro. Pero esta presentación icónica es negada en su integridad y colocada como resto, como desecho, ya que los materiales son descarnados, entregados en su estructura, traída al hueso, como si fuesen en rayos X y reinterpretados a través de su estructura elemental.
Es como si se quisiese penetrar en la esencia del objeto, en su modelo generador, en una forma invisible al ojo distraído. Pero esta forma secreta y generadora está colgada de algunos hilos que le niegan la vitalidad y autonomía. Se trata entonces de un pequeño teatro maniobrado por un soberano desconocido e invisible. ¿Podría entonces ser el espejo de nuestra situación existencial, que nos reduce a fichas de un sistema tan bien conocido (aparentemente libre), cuanto opresor? Puede que sea una interpretación de ciencia ficción, un poco cyberpunk, mas las formas elegantes e irracionales del pintor a esto pueden bien nos conducir. Así esquemáticas estas formas, pueden evocar las rejas que presiden a la formación de los objetos de la gráfica tridimensional, más bien son embadurnadas en una pintura densa y rica, que contradice este origen. Y entonces se regresa a la pintura y a sus sugestiones, a lo mejor pensando en el gotear del expresionismo abstracto, pero también al new-dada americano, voluptuoso y matérico, que es aquel que recorre en los fondos casi llanos de nuestros cuadros enriquecidos de pinceladas de azul que son parecidas a cascadas de agua y que desbordan a veces sobre los objetos borrando los límites y que dan así la idea de alguna profundidad a la escena dentro de una dialéctica entre figura y fondo, un diálogo, aunque mínimo, entre estas dos entidades. En los objetos el color que domina son los tierras, de los árboles y de los metales preciosos, que parecen también querer volver a la concreción de la materia bruta, de donde nacen y se diferencian los productos del hombre.
Los títulos de las obras: “La Edad del Oro”, “Caridad del Cobre”, “Narciso”,” Ábaco”, nos hacen sugerencia al mito, a la religión, a la técnica humana, a las grandes narraciones, y a lo mejor a aquellas narrativas contemporáneas de los videogames. Las referencias son altas y hablan de un nuevo humanismo, que reponga en el centro al hombre y su historia. Y entonces viene a la mente “lo real maravilloso” de Alejo Carpentier en la introducción de su novela “El reino de este mundo”, concepto bien retomado en el cine cubano (podemos pensar a “La última cena” de Thomas Gutiérrez Alea), que luego se conecta con el código dominante y preferido de la literatura latinoamericana en general. Mas no se puede olvidar tampoco “Divertimentos” de Eliseo Diego y quizás cuantos otros más para quedarnos solamente en la literatura cubana.
Es cierto, en transparencia se puede leer un llamamiento divertido al surrealismo y al código del extrañamiento, del extravagante, del misterioso, del enigma. Instigandonos a una posible narración en la que el espectador es llamado a seguir, interpretar o simplemente imaginar. El mundo de Iglesias entonces se presenta como profundo, inquietante y porque no, irónico, en su forma de sugerir invenciónes que son máquinas célibes, donde la denominación y el significado quedan por último inexplicado. Queda por fin al público encontrar resonancias interiores y descubrir si así se ha construido una nueva posibilidad de mirar al mundo, que le permita de cualquier manera cambiar.
Salto - Alexis Iglesias
Texto catálogo | Central Galeria Arte Contemporânea
Andrés Inocente | 2012 (em português)
Dissolvendo fronteiras
Andrés I. M. Hernández
São Paulo, setembro 2012
O mundo da arte pluralista exige uma crítica de arte pluralista, e isso significa, em minha concepção, uma crítica que não depende de uma narrativa histórica excludente, mas que toma cada obra em seus próprios termos, em termos de suas causas, de seus significados, de suas referências e do modo como esses itens são materialmente incorporados e como devem ser compreendidos.
Arthur Danto
Formado em Artes Visuais em Cuba, Alexis traz na bagagem uma sólida formação em História da Arte. O artista fez parte da chamada Geração 90 cubana, sob a influência de várias transformações socioeconômicas que o país passava. Isso se refletiu, entre outras coisas, em um acesso maior à informação sobre o debate artístico internacional. Iglesias, portanto, tem condições de refletir sobre a história da arte mundial de um ponto de vista muito particular que é o cubano. Escrever sobre o trabalho de Alexis Iglesias traz todas as dificuldades subjacentes à apreciação da produção artística contemporânea. Além disso, trata-se de um artista jovem que se dedica à pintura numa época em que a mesma perdeu a centralidade que ocupava na arte e na Teoria da Arte moderna.
Os trabalhos apresentados na exposição na Central Galeria de Arte, agora, são pinturas que partem de objetos reconhecíveis como um barco ou um globo terrestre antigo. Inevitável notar aqui a relação que ambos mantêm com a ilha, cercada de mar por todos os lados. A ”maldita circunstancia da água por todas” . Ao mesmo tempo, trazem também referências menos imediatas como estruturas de DNA e obras de outros artistas, que apontam cada uma a seu modo, para uma ideia de miscigenação muito presente na cultura cubana.
Iglesias apresenta em suas pinturas a redução de objetos a uma estrutura vazada, a uma espécie de esqueleto das coisas. São linhas sem preenchimento, como se fossem projetos aguardando futura execução. Os objetos cotidianos – alguns artesanais, outros com fortes referências da história são desnudados, mantendo as estruturas flutuando ou fixadas por cordas como títeres. Ou talvez, como brinquedos de crianças, que trazem uma leveza como se deles tivesse sido retirada toda a matéria. Torna-se, então, importante entender como as obras apresentadas explicitam a diferença entre uma produção artesanal e uma artística, evidenciando serem a consequência de uma realidade alicerçada na ideia de obter o máximo de qualidade e o mínimo de quantidade, contrária a uma produção em série indiferenciada.
O artista utiliza em suas obras diferentes técnicas e suportes. O contraste evidenciado nas pinturas atuais entre leveza e peso afinal, sabemos que os objetos não podem estar flutuando sozinhos, eles têm peso e estão suspensos por fios a uma superfície que permanece fora da tela já estava presente em uma série de desenhos em que os motivos representados parecem extrapolar os limites do suporte e assemelham-se a esboços de esculturas imaginárias.
Nestes desenhos a imagem extrapola o suporte como se as figuras representadas estivessem no limite do espaço. Aparecem manchas de cores escuras cujas bordas delimitam formas “esculturais”, funcionando como uma fronteira entre a produção anterior e a produção recente do artista, incluindo as pinturas em exposição.
A relação entre a figura representada e o espaço em torno dela é sempre tensa nos trabalhos do artista. Tudo se passa como se o fundo e a figura não conseguissem estabelecer uma harmonia e fossem forças em sentidos opostos lutando por espaço no interior do trabalho. Nas pinturas em questão, por vezes, o fundo invade a figura, como se estivesse em primeiro plano. A rigidez com que essas estruturas se constituem entram em contraste com o aspecto escorrido do fundo, com a liquidez da tinta que sua pintura transparece. Manchas formadas por linhas e camadas de cores percorrem a superfície da tela como cascatas que deslizam desde um topo invisível, atravessando a tela e seguindo verticalmente até uma base imperceptível. As figuras e os jorros de tinta flutuam na superfície da tela estabelecendo uma relação figura x fundo em que a tridimensionalidade dos objetos é lavada sempre por uma torrente de tinta na superfície da pintura. Surge assim “uma fronteira que, como uma pele, [….]contamina e se deixa contaminar, tornando-se um local de trocas”
As estruturas que surgem dos trabalhos de Iglesias instauram uma cadeia de associações que envolvem som, matéria, forma, inércia e conteúdo. Observa-se um forte apreço por uma representação verossimilhante dos objetos que lembra o registro fotográfico, pela instantaneidade da representação e pelo efêmero da composição. Reafirmando a colocação de Roland Barthes em A Câmara Clara que “a pintura pode fingir a realidade sem tê-la visto; seus referentes poderiam ser e o foram com bastante frequência ‘quimeras’ . Esta colocação, diante da evidencia pictórica nas obras do Iglesias, nos possibilita pensar no “Isto já não é”. O “ isto foi” , reafirmando o “ isto já não é ” , e distingue a maleabilidade da imagem: espaço ótimo para a nostalgia que é ao mesmo tempo espaço para a dúvida; certificado de presença, que simultaneamente se apresenta como um certificado de ausência; espelho da realidade que pode ser, potencialmente, mascara e simulacro. Mas toda a afirmação contida na presença desses objetos é questionada pelo fundo que intervém de modo a apagar contornos, confundir distâncias e denunciar a planaridade da superfície pictórica que os objetos parecem dissimular, uma vez que são feitos em perspectiva. Desta forma “ a planaridade pictórica transforma-se na forca de disrupção e desvio da frontalidade”
Os títulos das pinturas que o artista apresenta La Edad de Oro, Caridad del Cobre , Paradoxos e Narciso evidenciam a transformação das vivências, referências e influências históricas, políticas e pessoais do artista em ações estéticas.
– La Edad de Oro
A obra de Alexis acaba por ser uma metáfora que se realiza por meio da combinação de elementos, mesmo literários, presentes na obra de referência. Nela, a relação entre a estrutura e as cores e entre as cores em si também guarda uma relação sui generis. A fantasia que ronda um objeto histórico agrupa o todo por meio de uma estrutura central cujas peças têm a forma de ferradura. Das bordas, os jorros pictóricos se derramam bidimensionalmente, suspensos como triunfo ou como decadência. Dando a sensação de impossibilidade de acesso como se colunas de cores o impedissem de afirmar-se plenamente.
Várias linhas seguram o anel como se fixassem em nossa memória os poemas ou contos que, às vezes, pela repetição ou pelo gosto, nos acompanham durante toda a vida. Não há apenas referência ao metal sólido e precioso na composição, há também o verde do cobre, o azul do mar ou a hibridez resultante da mistura que se aproxima a nossas vivências nas quais nem tudo é ouro.
As cordas que seguram as estruturas são muitas, como muitos são os assuntos, temas e novos conteúdos assimilados e representados por todas as gerações de artistas em Cuba: legitimação de artistas e intelectuais, religião, apropriação de códigos, insularidade, emigração, apologia ao corpo. Eles formam parte do cotidiano na música, na literatura, na culinária, e nas artes plásticas não poderia ser diferente.
Descrevo assim, de forma metafórica nestas obras, essa ênfase na relação entre cor, suporte, figura, objeto representado, temporalidade presente na produção pictórica do artista.
As obras apresentadas na exposição reforçam a ideia da pintura como um sistema de estratégias aprendidas que as torna uma representação cada vez mais adequada às experiências do artista, ainda que estejam pautadas numa realidade histórica e visual pouco familiar. Mas o significado dado às pinturas pode ser um tipo de significado adicional como desdobramento inconsciente daquele sentido pictórico concebido pelo artista na criação da obra.
Metáforas do Eu
Texto catálogo | Centro Universitário da USP | MariAntonia
Andrés Inocente | 2007 (em português)
Metáforas do Eu
Texto catálogo – Centro Universitário da USP – MariAntonia
Andrés Inocente – 2007 (em português)
O mundo da arte pluralista exige uma crítica de arte pluralista, e isso significa, em minha concepção, uma crítica que não depende de uma narrativa histórica excludente, mas que toma cada obra em seus próprios termos, em termos de suas causas, de seus significados, de suas referências e do modo como esses itens são materialmente incorporados e como devem ser compreendidos.
Escrever sobre o trabalho de Alexis Iglesias traz todas as dificuldades subjacentes à apreciação da produção artística contemporânea. Além disso, trata-se de um artista jovem que se dedica à pintura numa época em que a mesma perdeu a centralidade que ocupava na arte – e na Teoria da Arte – moderna.
Procurarei discutir sua trajetória tomando como ponto de partida a idéia de que o contemporâneo é um período de desordem, cujas definições permanecem abertas, sem me preocupar com uma delimitação histórica precisa.
Formado em Artes Visuais em Cuba, Alexis traz na bagagem uma sólida formação em História da Arte. O artista fez parte da chamada Geração 90 cubana, sob a influência de várias transformações socioeconômicas que o país passava. Isso se refletiu, entre outras coisas, em um acesso maior à informação sobre o debate artístico internacional. Alexis, portanto, tem condições de refletir sobre a história da arte mundial de um ponto de vista muito particular que é o cubano.
Os trabalhos agora, são pinturas que partem de objetos reconhecíveis como um barco ou um globo terrestre antigo. Inevitável notar aqui a relação que ambos mantêm com a ilha, cercada de mar por todos os lados. Mas trazem referências menos imediatas como estruturas de DNA e obras de outros artistas, que apontam cada uma a seu modo, para uma idéia de miscigenação muito presente na cultura cubana.
Alexis apresenta em suas pinturas a redução de objetos a uma estrutura vazada, a uma espécie de esqueleto das coisas. São linhas sem preenchimento, como se fossem projetos aguardando futura execução. Os objetos cotidianos – alguns artesanais, outros com fortes referências da história – são desnudados, mantendo as estruturas flutuando ou fixadas por cordas como títeres. Ou talvez, como brinquedos de crianças, que trazem uma leveza como se deles tivesse sido retirada toda a matéria. Torna-se, então, importante entender como as obras apresentadas explicitam a diferença entre uma produção artesanal e uma artística, evidenciando ser uma conseqüência de uma realidade alicerçada na idéia de obter o máximo de qualidade e o mínimo de quantidade, contrária a uma produção em série indiferenciada.
Os trabalhos de Alexis utilizam diferentes técnicas e suportes. O contraste evidenciado nas pinturas atuais entre leveza e peso – afinal, sabemos que os objetos não podem estar flutuando sozinhos, eles têm peso e estão suspensos por fios a uma superfície que permanece fora da tela – já estava presente em uma série de desenhos em que os objetos retratados parecem extrapolar os limites do suporte e assemelham-se a esboços de esculturas imaginárias.
Os desenhos impressionam, em especial as séries acima mencionadas nas quais a imagem parece extrapolar o suporte como se as figuras representadas estivessem no limite do espaço. Posteriormente, produz a série em que o espaço cresce em relação à representação da imagem. No tríptico “sem titulo” estão manchas de cores escuras cujas bordas delimitam formas “esculturais”, funcionando como uma fronteira entre a produção anterior e a produção recente do artista, incluindo as pinturas em exposição. Na série de desenhos preparatórios para execução de esculturas, vemos a imagem de animais que podemos relacionar a períodos pré-históricos. Mesmo assim, nesta última série sempre aparece representado ao menos um objeto reconhecível de nosso cotidiano. Estes são desenhos escultóricos que surgem como esboços em pequenas dimensões que se agigantam em relação ao suporte, trazendo uma referência antecipada da futura tridimensionalidade.
A relação entre a figura representada e o espaço em torno dela é sempre tensa nos trabalhos do artista. Tudo se passa como se o fundo e a figura não conseguissem estabelecer uma harmonia e fossem forças em sentidos opostos lutando por espaço no interior do trabalho. Nas pinturas em questão, por vezes, o fundo invade a figura, como se estivesse em primeiro plano. A rigidez com que essas estruturas se constituem entram em contraste com o aspecto escorrido do fundo, com a liquidez da tinta que sua pintura transparece.Manchas formadas por linhas e camadas de cores percorrem a superfície da tela como cascatas que deslizam desde um topo invisível, atravessando a tela e seguindo verticalmente até uma base imperceptível. As figuras e os jorros de tinta flutuam na superfície da tela estabelecendo uma relação figura x fundo em que a tridimensionalidade dos objetos é lavada sempre por uma torrente de tinta na superfície da pintura.
As estruturas que surgem dos trabalhos de Alexis instauram uma cadeia de associações que envolvem som, matéria, forma, inércia e conteúdo. Observa-se um forte apreço por uma representação verossimilhante dos objetos que lembra o registro fotográfico, pela instantaneidade da representação e pelo efêmero da composição. Mas toda a afirmação contida na presença desses objetos é questionada pelo fundo que intervém de modo a apagar contornos, confundir distâncias e denunciar a planaridade da superfície pictórica que os objetos parecem dissimular, uma vez que são feitos em perspectiva.
Os títulos das pinturas que o artista apresenta – La Edad de Oro, Caridad del Cobre, Paradoxos e Narciso – evidenciam a transformação das vivências, referências e influências históricas, políticas e pessoais do artista em ações estéticas. – La Edad de Oro (1) A obra de Alexis acaba por ser uma metáfora que se realiza por meio da combinação de elementos, mesmo literários, presentes na obra de referência. Nela, a relação entre a estrutura e as cores e entre as cores em si também guarda uma relação sui generis. A fantasia que ronda um objeto histórico agrupa o todo por meio de uma estrutura central cujas peças têm a forma de ferradura. Das bordas, os jorros pictóricos se derramam bidimensionalmente, suspensos como triunfo ou como decadência. Dando a sensação de impossibilidade de acesso como se colunas de cores o impedissem de afirmar-se plenamente. Várias linhas seguram o anel como se fixassem em nossa memória os poemas ou contos que, às vezes, pela repetição ou pelo gosto, nos acompanham durante toda a vida. Não há apenas referência ao metal sólido e precioso na composição, há também o verde do cobre, o azul do mar ou a hibridez resultante da mistura que se aproxima a nossas vivências nas quais nem tudo é ouro.
Ao observar Caridad del Cobre (2), talvez, a obra nos remeta a uma embarcação, símbolo de insularidade. Ela agora está vazia, como se o tempo tivesse corroído sua estrutura externa. Mesmo mantendo-se suspensa e protegida, como relíquia em exposição, foi sendo destruído o objeto até restar apenas a carcaça. As correntes marinhas representadas em laranja cedem espaço para as cores verde azuladas, como as águas do Caribe, na parte em que está situada a popa do grande bote (Quem sabe é Yemayá, irmã da Virgem de la Caridad del Cobre, que cumprimenta).
As cordas que seguram a estrutura são muitas, como muitos são os assuntos, temas e novos conteúdos assimilados e representados por todas as gerações de artistas em Cuba: legitimação de artistas e intelectuais, religião, apropriação de códigos, insularidade, emigração, apologia ao corpo. Eles formam parte do cotidiano na música, na literatura, na culinária, e nas artes plásticas não poderia ser diferente.
Descrevo assim, de forma metafórica nesta obra, essa ênfase na relação entre cor, suporte, figura, objeto representado, temporalidade presente na produção pictórica do artista.
As obras apresentadas na exposição reforçam a idéia da pintura como um sistema de estratégias aprendidas que as torna uma representação cada vez mais adequada às experiências do artista, ainda que estejam pautadas numa realidade histórica e visual pouco familiar. Mas o significado dado às pinturas pode ser um tipo de significado adicional como desdobramento inconsciente daquele sentido pictórico concebido pelo artista na criação da obra.
Os Brinquedos dos Deuses
Texto do convite
Carmen Novo | 1994 (em português)
Os Brinquedos dos Deuses
Texto do convite
Carmen Novo – 1994 (em português)
Pensar na história é dado fundamental para a leitura e compreensão de uma obra de arte. Nenhuma produção artística está isenta de influencias de qualquer ordem, por que tampouco o artista vive isolado.
Na serie de desenhos que o artista apresenta, o espectador é colocado na posição de um deus, que observa cenas ou paisagens que mais se parecem a brinquedos ou jogos. Peças geométricas, construções, monumentos, crianças e elementos religiosos são como peças nessa vista aérea. O observador, nesse momento, parece poderoso.
Esse caráter lúdico reforça a intenção de refletir sobre uma idéia, a partir da quase possibilidade de movimentar os elementos do desenho criando outras relações. Não há como resistir a tanto poder nas mãos e como recusar a proposta de pensar sobre o que está vendo. È mais simples associar as imagens com elementos encontrados pelas cidades cubanas, mas devemos lembrar que estes existem e estão espalhados por toda a América. São as nossas identificações culturais. O que nos aproxima uns dos outros, que estão aí retratadas ora com traços de ilustração ora com todas as técnicas acadêmicas.
Quando Alexis elege os símbolos que irão compor seus trabalhos, está pretendendo universalizar as informações visuais e o pensamento sobre o que e que é o homem contemporâneo. É seduzindo com o poder da reflexão e de estar acima de qualquer coisa, que seus desenhos permanecem com aparência tranqüila e silenciosa na memória de cada um. A única inquietação parte dos sons vindos de nossas descobertas.
Minutos Antes
Fragmento do texto catálogo da exposição
Alberto Beuttenmüller | 1994 (em português)
Fragmento do texto catálogo da mostra Minutos Antes
Alberto Beuttenmüller – 1994 (em português)
Alexis Iglesias tem um desenho sofisticado e a condição desumana do planeta é seu tema central. O Mundo se tornou irreal, daí seu desenho ter um certo contato com a arte fantástica, com seus signos de civilização decadentes, com sua iconoclastia a recriar novos horizontes para o mundo.
Há um elemento lúdico em sua obra de formas rigorosas entre o claro e as sombras, entre o passado e presente e uma religião sombria.